Decisão do STF reafirma autoanistia do governo militar

Por Georgete Medleg Rodrigues (*)
“O esquecimento permanece, de fato, a inquietante ameaça que se delineia como pano de fundo da fenomenologia da memória e da epistemologia da história”
(Paul Ricoeur, La mémoire, l’histoire, l’oubli)

"Na forma e no teor, a anistia foi feita pelo poder militar para o poder militar". A afirmação é do colunista Jânio de Freitas, da Folha de São Paulo, após o STF decidir, por 7 votos a 2, manter inalterada a Lei de Anistia. Jânio de Freitas traduz, assim, que a Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979, não foi, contrariamente a um dos argumentos centrais dos defensores da sua manutenção, “amplamente negociada”. Simplesmente porque, em 1979, uma das partes detinha o poder e as armas.

O texto aprovado no Congresso Nacional, e promulgado pelo então presidente general João Batista Figueiredo, não foi objeto de consenso, mesmo entre os que lutaram pela anistia, indica o historiador norte-americano Thomas Skidmore no seu livro Brasil: de Castelo a Tancredo 1964-1985 (1988).

Entrevistas realizadas por Skidmore com dois importantes expoentes da luta pela anistia, Raymundo Faoro e Seabra Fagundes, respectivamente ex-presidente e presidente da OAB à época das entrevistas, são edificantes nesse sentido. Faoro relatou a Skidmore ter ajudado “a convencer um grupo de mães e viúvas dos que foram mortos pela repressão de que não havia perspectiva real de punir os torturadores”. Fagundes, por sua vez, declarou ter lutado “contra a anistia aos torturadores e, perdendo, lutou para torná-los passíveis de ação civil”, mas sua luta “também não logrou êxito”.

O resultado prático da Lei n. 6.683 foi ter instituído um fundamento legal para que agentes da repressão, agindo em nome do estado – ainda que de exceção –, fossem considerados anistiados de seus crimes de tortura. O que, segundo alguns conceituados juristas brasileiros, não os coloca, os crimes, na categoria de “crimes políticos ou conexos”, previstos na Lei: “os atos de tortura não ocorreram no momento do crime político, no calor do combate.

Foram ações sistemáticas, planejadas, regulares, realizadas sobre as vítimas já detidas, sob a custódia dos agressores”. Assim, a ação da OAB junto ao STF era no sentido de que aquele decidisse que a Lei de Anistia “não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos”.

A insistência de alguns, dentro e fora do Tribunal, de que rever a anistia seria um ato de revanchismo, não procede. O objetivo dos defensores da revisão da Lei era o reconhecimento de que a sociedade brasileira não foi cúmplice das práticas de tortura. Ou seja, teria um alcance pedagógico e preventivo.

Infelizmente, o que o STF decidiu – apesar das reiterações dos seus ministros de repúdio às práticas de tortura - evoca certas reflexões de pesquisadores europeus, especialistas no tema, segundo os quais algumas anistias resultam em “práticas escandalosas” (DEMATEO, RAYNER, SANGALLI e WAHNICH, 2007).

Esse resultado, entretanto, encerra somente um dos capítulos envolvendo diretamente a história recente do Brasil e que foi a julgamento no STF. Em seus votos, os ministros daquele Tribunal desvincularam essa decisão de outra questão polêmica, a ser analisada futuramente pelo STF: o acesso aos arquivos do regime militar, objeto de outra ação no Tribunal.

(*) Georgete Medleg Rodrigues é professora do Curso de Arquivologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do Departamento de Ciência da Informação e Documentação da Universidade de Brasília. Doutura em Historia pela Université de Paris IV (Sorbonne). Realizou, em 2008, estudos pós-doutorais na França, sobre acesso a arquivos sigilosos, na Université de Paris X.
Fonte: C G NEWS

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