Vitória da democracia ou paz romana?


A greve de policiais militares pôs em risco a maior festa popular do país. Com a rendição de grevistas em Salvador e prisão de líder no Rio de Janeiro, assegurou-se o Carnaval. Mas o que ainda nos preocupa é se assistimos a uma vitória da democracia ou a uma paz romana. O filósofo Immanuel Kant, escrevendo sobre a paz perpétua, radicalizou o problema da paz ao afirmar que não devemos considerar válido um tratado de paz que deixe sementes para a renovação da guerra. E mandou bem: porque não existe apenas a guerra injusta, existe a paz injusta.
Um tipo de paz injusta – porque unilateral – consagrou-se no vocabulário político na expressão paz romana, definida pela enciclopédia virtual como “um dos pilares da civilização romana e da sua difusão e implantação no mundo antigo, responsável pela ordem, tranquilidade, cumprimento da lei e, acima de tudo, da obediência e culto ao imperador”.
Sustento, com preocupação, que assistimos a uma espécie de paz romana, operada pelo poder da mídia usado com meios ilícitos pela Rede Globo de Televisão. Essa paz injusta enfraquece nossa ainda frágil e jovem democracia e é por natureza transitória. Talvez não se aguente muito além da Quarta-Feira de Cinzas.
Mas que paz é essa e como se chegou lá?
O “bolo do general”
A deixa para a Rede Globo de Televisão legitimar-se como tutora das nossas liberdades foi o episódio do bolo de aniversário oferecido pelos grevistas ao comandante da força nacional de segurança em Salvador. O núcleo do problema, interpretado por Elio Gaspari como “caquético e subversivo”, foi ter declarado o general que “não poderá haver confronto entre os militares”. Segundo o justamente celebrado historiador da ditadura militar, esse ato seria subversivo porque “atropa do Exército é mobilizada para exercer um efeito dissuasório. [e] O discurso do general e a cena do bolo transformaram o poderio militar em alegoria carnavalesca” (Elio Gaspari, “General do povo, não” na Folha de S.Paulo, 12/2/2012).
Mas a interpretação de Gaspari é injusta e perigosa.
O Exército não opera – na normalidade democrática – como agente de “efeito dissuasório” nos conflitos sociais, pois estes devem ser resolvidos pelos poderes civis. A vocação constitucional das Forças Armadas impõe-lhes o dever de prontidão para o resguardo da ordem pública, em estrita obediência à iniciativa dos poderes constituídos. Convocar para a prontidão é diferente de delegar, ao Exército, a mediação do problema. Nesse contexto, a conduta do general parece adequada à normalidade. Não se devem tirar palavras de suas circunstâncias. O verbo poder pode ser interpretado como reforço na busca da paz, no sentido de que não deve haver confronto. Resta uma ambiguidade na promessa de retomada das negociações caso os políticos não chegassem a um acordo de paz. Mas parece evidente que a segunda negociação não substituiria o poder civil (não se negociaria aumento de soldo), apenas a minimização de perdas humanas na rendição. O episódio prova, porém, como as ambiguidades podem ser bem exploradas – no discurso político – para fins autoritários. Toda usurpação precisa disseminar o medo para legitimar o ingresso vitorioso de outro poder mais eficiente. A aparente desmoralização do Exército, pela ambiguidade do evento, foi o mote para a Rede Globo ingressar na cena política. O próximo movimento precisará desmoralizar o Parlamento.
Interpretação da lei
Sendo parte no conflito, o Poder Executivo não podia ser mediador. O Poder Judiciário aplica a lei e exerceu sua competência dizendo que a greve era ilegal. Mas se o conflito persiste, ele ultrapassa a competência jurisdicional. Dos poderes constituídos, restaria o Legislativo.
Leis são produzidas no Legislativo. Se esse poder estimula a ilegalidade, não pode ter autoridade moral para mediar o conflito, porque se torna parte dele, em conivência com os grevistas.
Entra em cena o editorial disfarçado de opinião de juristas: a anistia teria proporcionado aos baderneiros uma expectativa de direito à greve, quando todo mundo sabe, por ser algo evidente, que esse direito teria sido proibido pela Constituição aos policiais militares e bombeiros. Logo, o Parlamento não obedece à Constituição, opina a emissora, através de entrevistas com juristas.
A Rede Globo tem direito de emitir opiniões e de entrevistar quem quiser. Mas a Imprensa, quando opina, tem o dever que todos nós temos, de assinar seu nome, evitar o anonimato. A opinião jornalística legítima atende pelo nome de editorial. Quanto mais claramente distingue o fato das opiniões mais a imprensa exerce autoridade. Confundindo uns e outras, exerce apenas poder. Criticando indiretamente, mas com eficiência, o Poder Legislativo como instigador da greve, sequer ocorreu à emissora conceder-lhe oportunidade de defesa. A falta ética não parece mero deslize na obediência às boas práticas jornalísticas. Pois sempre haveria risco de algum parlamentar lembrar-nos de fatos esquecidos, mesmo sendo tão recentes, e que fariam transparecer a inautenticidade da palavra do ministro da Justiça, e seu arrependimento em relação à anistia. Porque a Lei 12.505, de 11/10/2011, que “concede anistia aos policiais e bombeiros militares dos Estados de Alagoas, da Bahia, do Ceará, de Mato Grosso, de Minas Gerais, de Pernambuco, do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Norte, de Rondônia, de Roraima, de Santa Catarina, de Sergipe e do Tocantins e do Distrito Federal punidos por participar de movimentos reivindicatórios” tem as assinaturas de Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo e Luís Inácio Lucena Adams. Presumivelmente, essas três autoridades julgaram a lei apta à sanção, por ser constitucional, conveniente e oportuna.
Desmoralizados todos os poderes, a Rede Globo caminha para a vitória. Falta o golpe de misericórdia: a revelação ilegal de conversas telefônicas, que segundo a emissora conteriam não só um reforço de prova da conivência do Parlamento com quadrilhas de baderneiros, mas a prova da natureza política da greve. Xeque-mate.
A rápida justificação proferida por William Bonner, de que foram conversas “interceptadas por ordem judicial”, não legitima essa divulgação. Mas antes de refletir sobre a seriedade desse furo jornalístico ilícito, é útil refletir sobre a alegada obviedade da proibição constitucional da greve de policiais militares e bombeiros.
Os argumentos favoráveis à proibição do direito de greve a policiais militares e bombeiros militares constroem-se sobre o seguinte silogismo: 1. aConstituição proibiu sindicalização e greve aos militares; 2. policiais militares, como o nome diz, são militares; 3. logo, não podem sindicalizar-se nem fazer greve. Uma variação (no noticiário online da Rede Globo) apresenta como garantia de validade da premissa menor o chamado prossilogismo: 1. todos os que obedecem ao Código Penal militar são militares, 2. policiais militares obedecem ao Código Penal Militar, 3. logo, são militares. Variações tautológicas, mas de alta eficiência retórica: 1. policiais militares portam armas, 2. quem porta armas não pode fazer greve porque se torna perigoso, 3. logo, não podem fazer greve. Ou: policiais militares são servidores da segurança, logo, não podem atentar contra a segurança.
Provarei que são argumentos lógica e juridicamente inválidos. Reconhecendo que o tema é difícil, recorro às recomendações da tradição – convenientemente revogada por nossos juristas – para a boa interpretação da lei. A mais elementar é a de começar lendo o que está escrito. Mas também é útil investigar a história, a natureza e a relação entre si das coisas legisladas. Enfim, legitima-se como boa uma interpretação que congregue as interpretações gramatical, histórica e lógica.
A gênese explica muita coisa. Comecemos pela história dessa proibição.
Interpretação histórica
A Constituição de 1988 consagrou genericamente o direito de greve como meio legítimo de reivindicação de melhores condições de trabalho. Não se ocupou em proibir esse direito a A ou B. Nossos juristas têm predileção por julgar a inépcia da lei e sobrepor a essa irracionalidade sua razão superior. No caso da Constituição de 1988, é mania que não deve ser estimulada. A redação original de nossa constituição tem sabedoria e clareza em todos os seus termos. Não é de admirar, porque ela nasceu de condições históricas felizes, foi um texto conquistado, discutido, consolidado após muito esforço. A soberania estava “acordada”, para usar expressão de Carlos Ayres Brito em sua Teoria da Constituição.
Já a proibição da greve aos militares ingressou na Constituição dez anos depois, na Emenda 18, de 1998, no bojo de pacote de Reforma Administrativa solicitada pelo presidente como condição de governabilidade e manutenção do sucesso do Plano Real como estabilizador do crônico problema econômico da inflação. Não apenas a soberania esteve dormindo na discussão e votação dos termos do pacote. É possível dizer sem cometer injúria que essa legislação foi – na prática – outorgada à Nação pelo Poder Executivo. Não admira que seus termos – ao contrário da constituição original – sejam obscuros e – no aspecto mais sensível da reforma, até matreiros.
Por sua natureza diferente, não é absurdo imputar à Emenda Constitucional 18/1998 o vício de ter sido negligente e deixado de escrever – para evitar dúvidas – se a greve que proibiu aos militares, no capítulo próprio destes, deveria ser proibida aos servidores públicos disciplinados no capítulo imediatamente seguinte. O fato indiscutível é que não escreveu. Se não foi negligente, foi astuciosa, pretendendo proibir sem proibir expressamente.
Então já podemos classificar os juristas em dois grupos:
1. Um grupo terá algum pudor em transportar um dispositivo de um lugar para outro, vício conhecido como “interpretação às tiras”;
2. Outro grupo dispensa a letra da lei e supre o que imaginam que ela devia ter dito.
Na retórica forense, contenciosa por natureza, é natural que o primeiro grupo seja chamado de conservador, “positivismo primitivo-exegético-sintático” (a propósito, Carl Schmitt realça que a tripla adjetivação é retórica própria do romantismo político), feio, bobo, antiquado, novecentista, insensível em relação ao tema delicado da dignidade. Mais útil será dispensar os adjetivos, em réplica, e perceber apenas o paradoxo. Porque juristas que escolhem a via criativa (2) costumam apresentar-se como tutores do regime democrático, mas paradoxalmente não prezam o pilar de soberania em que se constrói o Estado de direito.
Voltando à genealogia da proibição, vale a pena discutir o dispositivo no lugar onde foi posto, o capítulo das Forças Armadas. A constituição emendada em 1998 proibiu greve e sindicalização (art. 142, § 3º, IV) aos militares, definidos (como dizem os juristas, em sentido estrito) no capítulo constitucional chamado “Das Forças Armadas”. Cito o texto a interpretar, a partir do site www.planalto.gov.br:
CAPÍTULO II – DAS FORÇAS ARMADAS – Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. [...] § 3º Os membros das Forças Armadas são denominados militares, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as seguintes disposições: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)[...] IV – ao militar são proibidas a sindicalização e a greve; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
Curioso é que o dispositivo aplicado para proibir greve aos policiais militares e bombeiros só tem utilidade na via da aplicação criativa dos juristas do segundo tipo. No lugar onde está na Constituição, é supérfluo.
Historicamente, a greve é instrumento de luta de quem é socialmente frágil. A greve dos socialmente fortes é ilícita por natureza, independentemente de proibição por lei do chamado lockout. As Forças Armadas, como seu nome indica, são fortes, porque tem à disposição a força das armas. Quem é forte e movimenta-se para alcançar determinado objetivo político pela força das armas não faz greve, mas ensaia golpe de Estado. Agora, dizer que o golpe de Estado é proibido pela Constituição é tão autocontraditório como decretar, na lei, que não existirão crimes. O dispositivo transparece em sua inutilidade se verificarmos nossa história desde a fundação (reporto-me à Constituição de 1988): nenhuma greve de militares se ensaiou entre nós, antes ou depois da proibição em 1998. E muito provavelmente não foi a proibição o fator responsável por isso.
A Constituição originária foi sábia no uso das palavras, e definiu a natureza das Forças Armadas com a mesma qualidade com que definiu o Ministério Público. São instituições permanentes. A ênfase na qualidade da permanência traduz fato significativo que permite compreender por que a sociedade não corre o perigo de que essas duas instituições façam greve para aumento de vencimento ou soldo. O motivo parece óbvio: greve se faz parando de trabalhar. Para que essa paralisação tenha efeito de persuasão política, a cessação do trabalho precisa sersentida imediatamente. Os serviços prestados à República pelas Forças Armadas e pelo Ministério Público não têm a imediatez que apresentam a segurança ostensiva e serviços essenciais de assistência à saúde, limpeza pública, etc. As Forças Armadas e o Ministério Público não paralisam seus serviços porque correm risco sério de que ninguém perceba, que não sintam falta deles. A paralisação enfrentaria o ônus de provar, na imediatez, a relevância e o direito à existência das instituições paradas. Por serem instituições estruturais da República, só se pode oferecer essa prova mediante raciocínio hipotético de imaginar como seria a vida do cidadão sem elas. Um raciocínio hipotético como esse é bem complexo e não serve como pressão política em tempos de normalidade. Políticos são tão imediatistas quanto o povo em geral, salvo quando o caos já se instalou e não sabem resolver.
Mas reiteradamenteacontecem greves de policiais militares e bombeiros. O fato de que existem, por si, prova que é da natureza dessas categorias serem socialmente frágeis. Os fortes não precisam de greve.
Para encerrar o argumento histórico, reporto-me ao legislador ordinário. A greve de policiais militares e bombeiros foi interpretada recentemente, na Lei 12.505, de 11/10/2011, como “movimento reivindicatório”. Se fosse evidente que a Constituição proibiu esse tipo de movimento reivindicatório a policiais militares e bombeiros militares, teríamos de admitir que falharam os crivos de controle constitucional exercidos pelo Parlamento e pelo Poder Executivo. Mas não se deve – sem graves razões – imputar ao Parlamento e à Presidência da República manifesto desrespeito à Constituição. Enquanto vigorar a lei de anistia, ela goza de presunção de boa origem, oupresunção de constitucionalidade, dedução legítima do princípio de soberania. Logo, para dois entre três poderes que exercem, cada qual a seu modo, controle de constitucionalidade,não é óbvio que a greve de policiais militares e bombeiros militares seria inconstitucional, como pretende a Rede Globo amparada em seus juristas.
Interpretação gramatical e lógica
Resta como salvação para a validade dos argumentos dos juristas concluir que a identidade entre militares e policiais militares é tão óbvia que seria dispensável a repetição da proibição no capítulo da “Segurança Pública”, porque a lei não precisa usar palavras inúteis. A primeira objeção ao argumento é que se fosse tão evidente essa identidade não se precisaria construir essa identidade com silogismos auxiliares (como operado no noticiário online da Globo).
Como no Brasil somos autoritários por nascimento, estamos acostumados a argumentos de autoridade. Sabemos, no íntimo, quando eles não convencem, só não nos ensinam a desafiá-los. Na realidade, a força de um argumento jurídico não deve estar na autoridade do seu criador, mas na capacidade ou força do argumento em si. Mas para ter essa força, o argumento precisa ser apresentado com clareza como se fosse desenhado. Todo argumento válido apresenta o seu layout (na expressão de Stephen Toulmin) e nesse desenho é que estão as garantias de validade da conclusão.
Conselho tradicional de interpretação das leis, ensinado por Carlos Maximiliano (1873-1960), recomenda que se respeite o “lugar” onde se encontra o dispositivo interpretado, e as relações existentes na lei entre nomes dos capítulos, títulos, etc. Tudo isso pode parecer pouco sofisticado. Mas a superioridade democrática do procedimento é que elenão dispensa o jurista de desenhar, para nosso convencimento, seu argumento, edizer em que premissas se amparou e que garantias de validade nos dá. A hermenêutica de Carlos Maximiliano apresenta várias recomendações que aplicam aTópica aristotélica, mesmo que o jurista não a conhecesse, porque é um texto especialmente difícil (recomendável para aproximação àTópica a tese, e depois livro, de Paul Slomkowski –Aristotle’s Topics – desde 1994 autoridade no tema). Ostópoiaristotélicos são – também – recomendações para a boa interpretação das coisas, e começam pelo convite a investigar se no argumento apresentado não nos venderam vinho misturado, confundindo gênero e definição, ou o que é próprio de algo por seu acidente. Aristóteles afina nossa sensibilidade para o problema da identidade das coisas, suas diferenças e semelhanças. A boa técnica legislativa – quer saiba ou não – também aplica na distinção de títulos, capítulos e pertencimentos de suas definições, algumas lições daTópica aristotélica.
A distinção tópica de semelhanças e diferenças é regra de inferência legítima, não truque para vencer o debate sem razão, como apresentada no estratagema nº 03 da Erística de Schopenhauer editada por Olavo de Carvalho. A propósito, Arthur Schopenhauer, filósofo de gênio platonista e personalidade reconhecidamente arrogante, jamais desenvolveu sensibilidade para a filosofia aristotélica. A boa recepçãodesse manuscrito entre nós explica-se pela necessidade que temos de tentar aprender a pensar. Mas o barbarismo de Schopenhauer fica devendo bastante nesse tema. Lição relevante de Aristóteles aparece no dificilmente perceptível uso distinto dos verbos ser (algo) e pertencer (a algo como atributo). Os exemplos de Aristóteles são fáceis para que os tópoi sejam facilmente memorizados, mas não são por isso triviais. Um exemplo, ridicularizado sem razão por Schopenhauer, é o seguinte: se o etíope é negro e seus dentes são brancos, é preciso cuidar para não entrarmos em contradição ao afirmar do etíope que ele é negro e branco ao mesmo tempo, pois entraríamos em conflito com os tópoi da contradição e do terceiro excluído. Por isso, em relação aos atributos de algo ou de alguém é sempre mais seguro usar o verbo pertencer: e diremos que a negritude pertence ao etíope em relação ao corpo e a brancura em relação aos dentes. A negritude e a brancura podem pertencer ao mesmo tempo ao etíope sem ofensa aotópos (que hoje chamamos lei) da contradição.
Com Aristóteles não aprendemos a sofismar, mas a pensar com rigor. Rigorosamente ele nos ensinaria, antes de concluir, a formular corretamente a pergunta: militares e policiais militares são idênticos ou não?
Identificado o problema, vejamos o que aprenderíamos com o Filósofo. Primeiro: quando dizemos militar, falamos degênero, definição, próprio ou predicado (atributo/acidente)? Precisamos retomar rapidamente o que significam esses termos (talvez o dito de Heidegger não seja tão transitório, e tudo que podemos dizer de Aristóteles é como nós ainda não o conhecemos direito).
Todo problema indica ou uma definição (hóron) ou umproprium (ídion) ou um gênero (génos) ou um acidente(sumbebekòs). Definição exige gênero + diferença específica e indica o que uma coisa é em sua essência-essencial (esquisitice que por necessidade forjei para verter o inglês de Slomkowski, “the thing’s very essence”). O proprium indica algo que pertence unicamente a outro algo como seu, próprio (ídion, de onde vem a palavra em português: idiossincrasia), mas não é sua essência. E gênero é aquilo que é predicado da essência de coisas que se distinguem, entre si, em espécies. O sumbebekòs tem naTópicastatus especial (Slomkowski) e significa predicado em geral, apenas excepcionalmente também o sentido restrito de acidente.
Isso tudo parece, à primeira vista, fora de propósito, e não obstante, é usadonaturalmente pelos juristas em seus termos técnicos como, por exemplo, “em sentido estrito” para a definição de algo, isto é, seu gênero somado à sua diferença específica, ou “em sentido amplo”, para indicar apenas gênero.
 A Constituição foi clara nas definições de seus termos técnicos, o que nos livra do perigo das invenções dos juristas. Como definição de militares a Constituição escreveu: “Os membros das Forças Armadas são denominados militares”. Então sempre que dissermos militares, devemos dizer “membros das Forças Armadas”, o que nos autoriza a pensar que, para a Constituição, mais ninguém é militar. Mas essa definição de militar é apenas sua diferença específica. Qual seria seu gênero?
Distingue-se o gênero pelo método da divisão encontrando o gênero oposto, que obviamente é o civil. Mas nada impede que espécies de gêneros diferentes possuam atributospróprios (algo que pertence apenas à espécie, mas não é sua essência). E nada impede que algumas espécies tenham atributos própriosem comum com espécies de gêneros diversos. Por exemplo: oéthos militar é comum aos militares, aos policiais militares e bombeiros e a alguns servidores não-militares, que são os policiais civis estaduais e federais. Oéthos comum é relevante para dizer algo próprio aos militares em oposição aos civis, mas não faz de todos os que se regulam pelo mesmoéthos militares por definição, apenas militaresem relação aoéthos institucional. Logo, oéthos institucional pode ser próprio a militares e a alguns civis, mesmo que sejam espécies de gêneros opostos, do mesmo modo como a brancura pertence ao etíope em relação a seus dentes, sem contradição com a negritude que lhe pertence em relação ao corpo.
A Constituição definiu com clareza policiais militares, como diferença dos militares, ao dizer que são um pouco semelhantes aos militares (forças auxiliares, reserva do Exército), mas um pouco semelhantes aos servidores civis, pois tratados em capítulo distinto, com título próprio (Da Segurança Pública), no mesmo lugar em que estão policiais civis e federais. Logo, não são militares. Nosso caminho não é um estratagema para vencer o debate sem razão, pois nada se oculta do leitor, que pode acompanhar o argumento com a Constituição ao lado.
 Mesmo sendo diferenças, todos os policiais (militares, civis e federais) têm em comum com as Forças Armadas oéthos institucional, construído sobre o tripé de honra-disciplina-hierarquia. No Observatório da Imprensa (“Greve ou quartelada?”, edição 275, de 4/5/2004), elaborei com mais detalhe o porquê dessasemelhança. Reportando-me a esse texto, e sem contradição com o que foi dito lá, aqui é preciso enfatizar a diferença entre semelhantes. Se o éthos fosse o elemento definidor da causa de proibição, a greve teria de ser proibida a policiais civis e federais. E o mesmo argumento pode resolver as falácias dos sub-argumentos apresentados. Se portar arma fosse a causa da proibição, policiais civis não poderiam fazer greve, porque portam armas. E no entanto, policiais civis e federais podem fazer greve e portar armas: só não podem, porque ninguém pode, reunir-se com armas (art. 5º, XVI, da Constituição).
Acredito que já começa a transparecer o caráter autoritário dos argumentos das autoridades que amparam os editoriais disfarçados da Rede Globo, pois todos se resolvem como silogismos falsos e tautologias: chegam à conclusão da proibição, sem indicar os caminhos que trilharam para chegar lá.
Resulta que essas autoridades com seus silogismos falsos e suas tautologias vão sedimentando um imaginário autoritário segundo o qual algumas pessoas possuem apenas deveres e nenhum direito. O autoritarismo congênito na alma brasileira facilita a governantes estaduais recalcitrarem no abuso de poder ao lidarem com a remuneração de policiais militares e bombeiros.
Mas podemos raciocinar de modo diferente e democrático pensando que não devem existir deveres sem direitos, nem devem existir direitos sem deveres. Abre-se aqui a hipótese de que tais governantes, eleitos por nós, ao abusarem do éthos da polícia militar e bombeiros militares, para governar mais facilmente o fluxo de caixa do Tesouro, ofendem nosso direito coletivo à segurança no mesmo movimento em que nos deixam em falta com nosso dever (coletivo) de remunerar dignamente os policiais. E se consentimos em que estamos em falta com nosso dever (através de nossos governantes), o mínimo que se pede – já que somos pessoas decentes que não gostamos de estar em falta com nosso dever – é que nos aproximemos do problema com respeito.
Concluiremos também que a proibição da greve, supérflua para as Forças Armadas, não é supérflua na transposição para “outra espécie”: a migração é cruel. Porque essa espécie diferente está situada no lado socialmente frágil na relação com os governantes. Triste é perceber como a diferença é ocultada, e asemelhança trazida à luz, de tal modo que o tripé honra-disciplina-hierarquia seja usado contra policiais militares e bombeiros por governantes abusados, que com éthos antidemocrático fazem deles reféns de sua ética. Então não será difícil imaginar que algumas pessoas serão levadas a pensar, com Cecília Meireles, que:
“O mais destemido e forte,/ um dia, também pergunta,/ contemplando a humana sorte,/ se aqueles por quem morremos/ merecerão nossa morte.” (Reflexão dos Justos, Romanceiro da Inconfidência, 1953)
Meio ilícito
Tendo justificado por que não é tão óbvio que policiais militares tenham acesso proibido à greve, vamos em frente, porque a greve é antes de tudo um fato que acontece, seja ou não proibido. Que parâmetros de justiça podem orientar-nos para concluir se determinada ocorrência é justa ou injusta?
Por analogia, o mais seguro é recorrer à doutrina de direito natural que distingue entre guerras justas e injustas. Para maior informação sobre o tema, reporto-me ao livro de Michael Walzer, Guerras justas e injustas, em linguagem moderna e com exemplos reais. O direito natural da guerra justa – por paradoxal que pareça – é um avanço civilizatório, ajuda-nos a julgar o que é a injustiça da e na guerra. E ainda tem o “mérito inquestionável de emprestar apoio moral aos Estados que desenvolvem guerras justas, independentemente dos resultados dessas guerras” (Agnes Heller, Beyond Justice, Blackwell: 1987, p. 219).
A distinção fundamental nessa doutrina se faz entre o direito à guerra (ius ad bellum) e o direito naguerra, ou a justiça dos meios empregados na guerra (ius in bello).
Começando pelo primeiro (prejudicial): acho difícil alguém pensar ou mesmo declarar que o direito à greve é abusivo. Para a justiça da causa, não acredito que se precisaria mais que a eloquência muda do cartaz “R$ 1.031,38. Esse é o valor e uma vida?”,noticiado pelo Diário Catarinense no dia 11/2/2012, p.22 com a legenda: “No centro do Rio, cartazes alertam para a situação salarial dos PMS”.
Em comentário no blog do jornalista Moacir Pereira, Frederico Goedert adiciona algumas razões: “O trabalhador militar não gosta de fazer greve. Engana-se quem pensa ao contrário”. [mas] “Ao militar é exigido tempo integral (24 horas) à disposição do estado. É exigido que fique noites sem dormir. Que trabalhe sob stress. Que coloque sua vida em risco. Que entre onde nenhum ser humano tem coragem de entrar. É exigido lealdade. O mínimo que se espera é um salário à altura e condições boas de serviço. O militar não pode fazer greve. O governo também não pode exigir tudo que exige sem contraprestação. Ao contrário, as greves dos militares são justas e moralmente legais!” (ver aqui).
Acredito que a justiça natural da razão de ser da greve seja a premissa que levou os poderes constituídos a oferecerem anistia, recentemente, em manifestação de soberania que não é manifestamente inconstitucional.
Mas a guerra justa não se define apenas pela justa causa, pois ela pode tornar-se injusta se desenvolvida por meios ilícitos. A justiça de origem pode ser contaminada irremediavelmente pela injustiça dos meios e a guerra – que era justa – torna-se injusta.
Constituem meios ilícitos, entre outros, o saque ou pilhagem de bens, o sequestro de civis ou militares como moeda de troca, e o sítio ao inimigo do qual não reste pelo menos uma saída. Por analogia, a deflagração ou promessa de greve na véspera de evento de massas relevante para a sociedade, como o Carnaval, é uma forma de sítio do inimigo. Essa qualidade contamina de modo absoluto a justiça original da causa. Uma greve na véspera do Carnaval é equivalente à promessa ou à deflagração de paralisação do serviço por controladores de voo, por exemplo, na véspera da Copa do Mundo de 2014.
Não se justifica que nos deixem sitiados e sem alternativas, mesmo que tenhamos nossas faltas na coluna de nossos deveres. Sitiados, os cidadãos têm direito de recorrer à força. A desmobilização forçada do movimento, nessas circunstâncias, é justa. A única questão relevante é que se deve agir com justiça na desmobilização forçada. Uma vitória da democracia teria sido a desmobilização forçada do movimento por meios legais. Mas o que se viu foi o emprego, pela Rede Globo de Televisão, de meio dissuasório ilícito, vinculado à prática de crime.
O meio dissuasório ilegal
O rolo compressor global operou em dois movimentos. Primeiro, ao desmoralizar a justiça da causa. No segundo, ao apresentar como sua credencial para agir politicamente a “prova” irrefutável de que se tratava de uma “greve política”. O jargão da greve política é clássico. Também a ditadura militar opunha-se às greves no ABC paulista nesses termos, o que prova apenas que o repertório da retórica política é limitado.
Mesmo depois de encerrada a greve segue o Jornal Nacional reportando-se à prova apresentada como divisor temporal de águas do conflito: antes e depois da divulgação de telefonemas. O que nos preocupa é a ilicitude da prova.
A intimidade da comunicação telefônica só pode ser devassada excepcionalmente e mediante cuidados legais. Entre os cuidados, comanda a Lei 9.296, de 24-7-1996, em seu art. 8° que “a interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas”. Como reforço de eficácia do segredo de justiça, a lei especial criou tipo mais grave de violação do segredo funcional, que já era crime no Código Penal, em seu art. 10. “Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa”.
A Rede Globo em seu Jornal Nacional revelou – como prova do caráter político das greves na Bahia e no Rio de Janeiro – conversas telefônicas entre liderança do movimento e parlamentares, operando um xeque duplo, pois desmoralizava o movimento tido como político e o Poder Legislativo por insinuada conivência.
O fato de esse tipo de “furo” jornalístico tornar-se rotina não legitima o meio empregado. A ressalva, transmitida por Bonner pela qualidade de terem sido conversas interceptadas por ordem judicial, não empresta legitimidade à divulgação do material, salvo se a Rede Globo tivesse afirmado expressamente que possuía autorização judicial escrita para levar ao ar aquele material. Como não disse, presumimos que essa decisão judicial não existe. E podemos deduzir também, sem risco de imprudência, que o material interceptado chegou como furo de reportagem às mãos do Jornal Nacional como produto de crimeantecedente por alguém que quebrou o segredo de justiça, sem autorização judicial e para objetivos não autorizados na lei que disciplina a interceptação telefônica.
Sobre a ilicitude da conduta da Rede Globo, mesmo que não seja crime, cito, por todos, o argumento solidamente construído de Luís Roberto Barroso:
“O conhecimento acerca do fato que se pretende divulgar tem de ter sido obtido por meios admitidos pelo direito. A Constituição, da mesma forma que veda a utilização, em juízo, de provas obtidas por meios ilícitos, também interdita a divulgação de notícias às quais se teve acesso mediante cometimento de um crime. Se a fonte da notícia fez, e. g., uma interceptação telefônica clandestina, invadiu domicílio, violou o segredo de justiça em um processo de família ou obteve uma informação mediante tortura ou grave ameaça, sua divulgação não será legítima”. (Luís Roberto Barroso. “Liberdade de expressão versus direitos da personalidade. Colisão de direitos fundamentais e critérios de ponderação.” Em Temas de Direito Constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro, São Paulo, Recife: Renovar, 2005. p. 99-100. p. 114).
O fato cometido no Jornal Nacional é ilegítimo, em gênero, mesmo que não seja crime. A Lei 9.296/1996 não criou o crime de divulgar material recebido ilicitamente, o que seria figura semelhante à da “receptação” (recebimento consciente, ou por culpa, de produto de crime patrimonial) do produto de crime de violação de segredo funcional. Mas nem tudo que não é crime é legal, ou moralmente lícito. A tranquilidade da emissora em proceder ilicitamente vem do fato de que é bastante improvável que a Justiça brasileira lhe imponha o dever de revelar sua fonte, quebrando o sigilo, pelo argumento lógico de que um direito constitucional não permite ser usado para a ocultação de crimes, que o direito não admite sua própria violação. Nossa Justiça prefere, nesses casos sensíveis, a retórica dos direitos absolutos, mesmo assegurando expressamente que eles não existem. Mas direitos absolutos protegem absolutismos, não a eternamente frágil democracia.
O único argumento que justificaria a emissora seria o do recurso à cláusula constitucional da eficiência em situação de calamidade. O constituinte originário não pensou em elevar à categoria nobre dos princípios a mera utilidade, que só chegou pela via da emenda 19/1998. A eficiência – codinome da utilidade – é coisa importante, mas subordinada aos princípios que integram a substância do regime democrático. É subordinada, por exemplo, à legalidade. Fora da lei, temos o crime, de um lado, e a tirania, do outro. A suspensão temporária da lei para atendimento de problemas extraordinários por meios extraordinários tradicionalmente tem o nome de ditadura. Maquiavel, injustiçado na tradição como pai do chamadomaquiavelismo, ensina com lucidez que:
“Seria desejável que nunca ocorressem circunstâncias que exigissem remédios extraordinários, pois não há dúvida de que, embora as vias extralegais sejam úteis, o seu exemplo é sempre perigoso. Começa-se por atingir as instituições existentes com o propósito de servir ao Estado e logo se usa desse pretexto para perdê-lo” (Maquiavel. Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio (“Discorsi”). Tradução de Sérgio Bath. 3ª ed. Brasília: UnB, 1994. p. 114).
Ironia de ironias é que a Rede Globo apresentou ao público prova ilícita de que a greve seria “política” para “fazer política”. Sabemos, por observação da natureza das coisas, que greves não são feitas por motivos políticos. O argumento da greve política é argumento político. O filósofo Carl Schmitt teve clareza em ressaltar esse aspecto do caráter polêmico do “uso linguístico da palavra ‘político’, quer se coloque o adversário como ‘apolítico’ [...] quer se queira, pelo contrário, desqualificá-lo e denunciá-lo como ‘político’, para elevar-se acima dele como ‘apolítico’” (Carl Schmitt, O conceito do político. Trad. Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 1992. pp.57-8).
A paz conquistada pela Rede Globo ressoa a uma paz romana que atenta contra o soberano exercício do Poder Legislativo, porque a Rede Globo sub-repticiamente e por meio ilícito faz campanha contra a PEC 300, que aparece como uma espécie de prêmio para baderneiros. Vale a pena desenvolver um pouco a causa que justificaria meios extraordinários: seria a PEC 300 perigo mortal para a democracia?
PEC 300 – Solução à vista ou atentado à democracia à mão armada?
Janio de Freitas critica com dureza, na Folha de S.Paulo de 12/2/2012, o movimento dos policiais e a PEC 300, que seria ilegítima por ofender o pacto federativo, e perigosa: causa potencial de quartelada nacional. O preconceito das classes letradas brasileiras contra corporações policiais é parte de nossa alma autoritária e transparece na descrição de reivindicação salarial como busca da felicidade. “Nada menos do que isto: para fazer felizes os policiais e os bombeiros, é preciso que o Congresso aprove e o governo aplique uma deformação ao sistema constitucional e ao regime político”. Mas nem é de felicidade que tratamos.
A PEC 300 limita-se, segundo Relatório da Comissão de Constituição e Justiça, a “modificar a redação do §9º, do artigo 144, da Constituição Federal, relativa à remuneração dos servidores policiais integrantes dos órgãos de segurança pública do país. De acordo com o proposto, a remuneração dos integrantes das polícias militares e dos corpos de bombeiro militares dos Estados, além de ser fixada na forma do §4º, do art. 39, como já previsto atualmente, não poderá ser inferior à da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiro Militar do Distrito Federal”. É só um piso mínimo nacional, não é um vencimento nacionalmente unificado, algo muito diferente. Então não é válido o argumento de que: “o vencimento nacional é um fator de força inimaginável. A cada pretensão de melhoria, o peso da ameaça de greve não virá de uma polícia, em um Estado. Cobrirá, de cima a baixo, todo o país” (Janio de Freitas, “À mão armada”, Folha de S.Paulo, 12/02/2012).
Não vejo ofensa ao federalismo. Pisos salariais unificados são comuns em acordos coletivos de trabalho. A reforma de Fernando Henrique tendia a aproximar a administração pública de modernos instrumentos gerenciais, e o piso mínimo seria legítimo desenvolvimento da reforma. E não nos constituímos como Estados Unidos do Brasil. A diferença entre o Brasil e os Estados Unidos da América, que foram colônias autônomas reunidas em contrato federativo, não é só histórica, mas de constituição jurídica. O nosso é um federalismo no Estado unitário, que admite, em casos sensíveis, o exercício moderador do poder da União. A PEC 300 seria análoga à instituição de uma espécie de SUS da segurança pública, dado o estado de saúde fragilizado, por desrespeito, recalcitrante, pelos estados da federação, aos direitos dos trabalhadores da segurança pública. Se é solução para o problema, não sei, mas é reivindicação digna de ser apreciada com seriedade pelo Parlamento.
A deslegitimação da PEC 300 por risco de quartelada nacional é injusta amplificação retórica: o piso mínimo não implica que os soldos sejam unificados. Pela natureza das coisas, dificilmente haverá greve nacional para elevação do piso mínimo. A greve é um instrumento de pressão oneroso para quem nela participa. “O trabalhador militar não gosta de fazer greve. Engana-se quem pensa ao contrário” (Sd. Goedert, acima citado). Greves não são normalmente deflagradas por solidariedade política a quem ganha menos. O perigo disso não existe.
Mas que tipo de solução a PEC 300 propõe?
Em minha opinião, seria o começo de conserto, em favor das categorias mais necessitadas, do erro que representou, sob o nome de reforma, a destruição da burocracia brasileira operada pela reforma administrativa de 1998. Apresento resumidamente uma interpretação possível da origem desse problema.
A reforma imperial de Fernando Henrique Cardoso
Quando a soberania esteve acordada, a Constituição cuidou de assegurar a paz. Na questão sensível da organização do funcionalismo público determinou a Assembleia Nacional Constituinte que a “revisão geral da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data”. Do dispositivo original se deduz que apenas uma greve geral, envolvendo civis e militares, seria capaz de forçar o governo a ceder um índice maior. E como se sabe – inclusive por ser associada expressamente ao mito, na literatura política, por Georges Sorel – a greve geral é mito, não ocorrência normal.
Economistas podem ter culpado o sábio constituinte pela espiral inflacionária do primeiro governo civil depois da Constituição. Não posso contra-argumentar por ignorância nesse assunto. Proponho que interpretemos politicamente a Reforma Administrativa. Porque Fernando Henrique Cardoso literalmentedemoliu o espírito democrático e republicano da Constituição originária e assegurou permanência a um espírito novo, inscrevendo-o na Constituição através da Emenda 19/1998.
A guinada imperial promovida pelo presidente – declaradamente inspirado, em sua autoimagem de estadista do possível, no autoritarismo de Bismarck – operou pela aparente promoção de todos os servidores à “nobre” condição de “membros de Poderes”. Engenhosamente conquistou-se nosso consentimento por recurso às nossas vaidades (demagogos são excelentes psicólogos). Não seríamos mais servidores, mas “agentes políticos”. Em troca, a Reforma Administrativa criou o sistema do “subsídio” com que literalmente destruiu a concepção de carreira no serviço público, com seu legítimo escalonamento progressivo de acréscimo salarial (Adicional por Tempo de Serviço), de resto minguada vantagem para atrair o cidadão qualificado para trocar a atividade privada pela pública e nesta permanecer.
Com o sistema do subsídio, nosso estadista do possível aboliu o espírito republicano da Constituição originária. Não apenas distinguiu entre civis e militares, por natureza incompatíveis com a modernidade da reforma gerencial, como proporcionou que os governos federal, estaduais e municipais tratassem a burocracia dentro do possível, dando para cada um o possível que lhes seria devido. Como somos autoritários, é normal esperar que o possível do general será sempre mais possível que o do soldado; o possível do ministro mais possível que o do professor; será preciso sobrar alguma possibilidade para o subsídio único dos mais fracos. A política do possível de Fernando Henrique não é uma instituição republicana: sua lógica atende pelo adágio romano do divide et impera.Esta é a herança paradigmática de Fernando Henrique Cardoso: é mais fácil governar um império que governar uma democracia.
Mas ao dividir-se o funcionalismo em generais, professores, civis, militares, policiais, bombeiros, ainda assim somos todos iguais. Porque todos são iguais na democracia e na tirania, dizia Montesquieu: mas na democracia por que são tudo, na tirania porque todos igualmente não valem nada. No espírito imperial da Reforma Administrativa de 1998 somos todos igualmente pedintes dos governos, ninguém mais tem direitos. Nada disso é novidade, apenas um upgrade da regra ditatorial que comanda “aos amigos, tudo; aos inimigos, os rigores da lei”.
Às categorias socialmente frágeis, o rigor do tal subsídio único. Aos amigos, tudo, através de nossa proverbial criatividade de manipular os nomes das coisas. A prática, que já vai fazer 14 anos, vai acumulando ressentimentos, porque é mesmo odiosa. Para dar um exemplo significativo de ocorrência no Rio de Janeiro, lei desse estado de número 5.535, de 10/2/2009 cria várias vantagens remuneratórias para a magistratura fluminense, mas o nome da lei diz que ela dispõe sobre “fatos funcionais da magistratura”. É evidente que jamais haverá uma lei dispondo sobre fatos funcionais da polícia militar e dos bombeiros, que acrescente vantagens ao subsídio único, e isso prova que o “subsídio único” criado pelo estadista do possível fere aparentemente a lei da contradição de Aristóteles, porque existe e não existe ao mesmo tempo. Na realidade, nada existe e não existe ao mesmo tempo, logo, a diferença é que o subsídio existe e não existe ao mesmo tempo, mas não para as mesmas pessoas.
Não admira que um sistema de poder imperial – que não pode ser mais confortável para quem ocupa a cadeira do poder, por natureza macia, seria recebido alegremente por Lula e Dilma, que apenas adicionaram ao sistema seu tempero paternalista, que torna o autoritarismo inerente ao espírito imperial do antecessor uma forma popular, praticamente invencível, de governo forte, que se aproxima dobonapartismo.
Lula tem o mérito de ter chamado atenção do mundo para a urgência em estendermos a mão a todo ser humano que passa fome. O problema político desse chamado é quando se institucionaliza a caridade como paradigma de governo. O paternalismo é outra face da moeda do autoritarismo.
Para o governante autoritário, existem categorias de pessoas que possuem apenas deveres, e nenhum direito, quando muito o direito único de pedir favores, sem que exista o dever correlato de concedê-los.
Para o governante paternalista, existem pessoas que possuem apenas direitos, mas nenhum dever. Eis o novo paradigma introduzido por Lula, que, ao contrário do que se imagina, não constitui novidade histórica. Antepassado legítimo na árvore genealógica da Bolsa Famíliaé a instituição inglesa da “renda vital mínima” (as rents) das Leis dos Pobres, com as quais as classes possuidoras pretendiam reagir à modernidade e à chamada revolução industrial. A classe trabalhadora, nascente, percebeu essa concessão como potencial destruidora de sua autoestima e inimiga de sua auto-emancipação. Relato dessa história encontra-se no excelente livro de Karl Polanyi, A grande transformação. O sistema conhecido como Speenhamland – local onde votadas as primeiras “rents”, em 6 maio de 1795, “conduziu ao resultado irônico segundo o qual o ‘direito à vida’, implementado pelo auxílio financeiro, com o tempo arruinava as mesmas pessoas às quais fora ostensivamente desenhado para socorrer” (p. 81). Verificou-se tristemente que “once in the rents, always in the rents”, uma vez na Bolsa-família, nunca mais se sai dela. Foi “a abolição do sistema Speenhamland [que] representou o verdadeiro nascimento da moderna classe trabalhadora”, p. 101 (em Karl Polanyi. The great transformation: The political and economic origins of our time. Boston: Beacon, 1957).
Não sou contrário à ajuda humanitária para os que passam fome. Mas é preciso registrar que o imaginário da caridade como princípio de governo não tem sequer ímpeto revolucionário. É, aliás, bastante conservador, e atenta – em sua essência paternalista, contra a auto-emancipação das classes trabalhadoras.
Concluo que, no aspecto sensível da remuneração dos servidores públicos, não apenas não houve alteração essencial entre os impérios de Fernando Henrique Cardoso e de Lula/Dilma, mas ocorreu umupgrade de autoritarismo, porque engenhosamente ocultada, agora, a natureza autoritária de governo pelo paternalismo das políticas públicas de caridade. O que se vê em pleno desenvolvimento, desde 1998 até ontem, é resistência enérgica ao espírito democrático e liberal (republicano, se o nome não fosse tão abusado) da nossa fundação. Em crises insolúveis, recomenda-se voltar ao bom princípio. Mas ainda temos energia? É preciso semear uma esperança boa, e para ela é preciso pedir publicamente que o Poder Legislativo retome seu lugar para a correção de rumos desse desvio. E com esse pedido podemos caminhar para o balanço de perdas e ganhos do episódio.
Difícil é computar algum bem na coluna de ganhos, pois perdemos todos nós.Perdeu a nossa jovem e frágil democracia. A Polícia Militar, silenciada por meios ilícitos e sem ter chegado a um justo acordo de paz, tende a ressentir-se da própria democracia, sem perceber que ela tornou-se um império que permite que os mais iguais sigam recebendo remunerações mais possíveis, e lhes sobre apenas o impossível. Esse ressentimento – quando se vive na linha tênue de fronteira da miséria, retorna agressivo no acréscimo gradual da violência policial contra nós, cidadãos. E mal podemos reclamar se também somos responsáveis por essa violência.
Na democracia, os conflitos devem ser resolvidos por mediadores legitimados pelo povo. O que transparece na paz global (romana) é a instituição de deveres sem direitos, outra face da moeda dos direitos sem deveres. Esta caracteriza uma espécie de política paternalista; aquela, uma política ditatorial, que como reza a tradição se institui para salvar nossa liberdade. Mas que estou dizendo,liberdade?
Cecília Meireles não foi apenas a mais alta expressão da poesia em nosso idioma, mas jornalista de coragem cívica para denunciar os desmandos do Sr. Ditador, na década de 30 do século passado. Copio de um artigo seu a magistral peroração que pede, pelo menos, que se conserve a “significação dos nomes”:
“Liberdade! Oh! mas, afinal, sejamos coerentes. Façamos o déspota. Façamos o vizir. Façamos, de certo modo, o César do século XX. Mas conservemos a significação dos nomes!” (Cecília Meireles, “Questão de Liberdade”, Diário de Notícias, 06 maio 1931, citado em Valéria Lamego. A farpa na lira: Cecília Meireles na Revolução de 30. São Paulo: Record: 1996. P. 166).
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[Marco Aydos é mestre em Direito (UFSC) e em Filosofia (New School); autor do blog marcoaydos.wordpress.com]

FONTE Logo Observatório da Imprensa

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