Um lixo, um verme, uma máquina de trabalhar

Estou ausente. Não consigo encontrar inspiração para escrever. Minha mente está cansada. Uma pilha de papéis se acumula sobre minha mesa. Trabalho ininterruptamente, vorazmente. Quando chego a minha casa, já estou esgotado; e enojado de olhar para uma tela de computador.
Todavia, parece que sou o único preocupado com meu trabalho. Eu não produzo resultados para a corporação, não trabalho na atividade fim. Meu trabalho não aparece. E, por não aparecer, meus chefes devem pensar que fico o dia inteiro coçando saco na ociosidade. A cada dia me sinto mais desvalorizado, sinto que meu trabalho não tem nenhum valor.
Continuo sendo massa de manobra, e agora nem consigo planejar minha vida pessoal. Não raras vezes, aparecem escalas especiais no final do expediente. Isso quando não aparecem na sexta-feira à tarde, jogando por terra todo o planejamento que eu tinha feito para o final de semana. Final de semana? Não faço mais planos para ele. Na verdade, não faço planos para mais nada... Só penso na aposentadoria, que ainda está longe, a décadas de distância.
Como forma de “compensar”, costumam me dar um dia de descanso ou um meio expediente. Como se compensasse alguma coisa... A cada dia que não trabalho, a pilha de papéis aumenta em velocidade descomunal. É como um sono perdido; difícil de recuperar. Na verdade, a folga é um engodo, porque, no final, eu vou ter que trabalhar dobrado para dar um fim na papelada que acumulou. Ou alguém se habilita a fazer o meu trabalho?
Essas escalas especiais me deixam indignado. Existe uma norma da corporação de que essas escalas devem ser comunicadas com no mínimo 48 horas de antecedência. Mas parece que trocaram horas por minutos. Eu devo ser um lixo, um bicho sem valor, sem sentimento, sem vida pessoal. E ainda devo dizer sempre muito obrigado, sempre abaixar a cabeça, ser bem disciplinado, só fazer pelo bem da nação, tudo pelo interesse público, tudo o que me for ordenado, para ganhar, da comissão final, um diploma de subserviente e de bem comportado. Eu mereço, tudo vai bem, tudo legal...
Um dia ouvi um companheiro dizendo que não reclamava porque, se não estivesse na corporação, estaria capinando beira de estrada. Não vou dizer que ele está errado, porque cada caso é um caso. Mas minha situação é diferente. Eu abandonei uma Universidade Federal para ingressar na corporação, deixei de lado um futuro promissor. Tentei crescer na corporação. Por duas vezes, quase consegui, mas tive a infelicidade de ouvir que “não fazia nada mais do que minha obrigação”. Agora, não arrisco a minha vida de maneira nenhuma pelo cumprimento da missão. Não arrisco mesmo! Por isso não reclamei quando me mandaram ficar atrás de uma mesa. Não era isso o que queria quando ingressei na corporação. Entrei pela adrenalina, justamente pelo risco. Gostava de sentir o coração batendo mais forte. Mas, na realidade, a adrenalina e o risco andam bem próximos da morte, ainda mais nesse sacerdócio. Vida só se tem uma. Não é como vídeo-game. Passei por situações difíceis. E ainda tive de ouvir certa psicóloga me falar “que não fazia nada mais do que minha obrigação”. Naquele momento, morreu um profissional apaixonado pelo que fazia...
Agora estou eu aqui, sem nenhuma vontade de perder minha vida para cumprir metas nem para me arriscar por uma sociedade que só me critica; agora estou eu atrás de uma mesa e de uma pilha de papéis; estou eu cada dia mais cansado, exausto, sem direito de planejar coisa alguma; esgotado psicologicamente; sem inspiração; um lixo, um verme, um bicho, uma máquina de trabalhar...
Nota: Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, fatos e lugares são frutos da imaginação do autor e usados de modo fictício. Qualquer semelhança com fatos reais ou qualquer pessoa, viva ou morta, é mera coincidência.

"É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” - Inciso IX do artigo 5º da Constituição Federal.



texto retirado do site:universo policial

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